segunda-feira, 11 de março de 2024

dois poetas e o rio de Heráclito



Caro amigo Clauder Arcanjo.
Emocionante sua resenha sobre o Trem da memória e a escrita de Nirton Venâncio, esse nosso amigo gentleman (como você) e poeta (como você).
Interessante como você abocanha desse livro os versos mais indicativos da biografia do poeta. São belezas que só outro poeta pode avistar.
Engenhoso o confronto que faz de sua própria biografia (de você) com a dele: são duas crianças; dois sertões; dois rios; dois retirantes; dois exilados que, através da utopia poética, tentam se banhar cada qual em seu rio mais uma vez, no mesmo rio impossível de Heráclito: o passado é esse rio que não se atravessa mais.
Parabéns por sua sensibilidade poética e por saber transformar tudo isso em escrita da melhor qualidade.
Forte abraço!
Valdi Ferreira Lima, poeta
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Clauder Arcanjo, escritor, membro da Academia de Letras do Brasil. Autor de Licânia, Novenário de espinhos, Uma garça no asfalto, Cambono, O Fantasma de Licânia.
Valdi Ferreira Lima, poeta, autor de O guardador de raízes, Poemas para assobiar de longe, Apontamentos sobre o cultivo da poesia, O terceiro anonimado, Outono do quase novo.
Eles são meus dois poetas-rios de predileção onde mergulho sempre para aprender a nadar na poesia.
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Trem da memória, Editora Radiadora, 2022
À venda pelo site www.radiadora.com.br e com o autor. 

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

pretérito


Do lado fronteiriço do pai
meu avô João
com um canivete esculpia palitos para os dentes
com lascas do cercado trazidas do curral
onde o boi mugia no final da tarde
a tarde que intendia o alpendre
o alpendre que estendia meu olhar
o meu olhar que entendia meu avô
e os fiapos de madeira pelo chão
e as réstias da tarde pelo vão
e os palitos no colo do avô João.
Entre o velho e o menino:
os palitos,
a tarde
e o coração.
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Do meu livro "Trem da memória" (Editora Radiadora, 2022)
À venda pelo site www.radiadora.com.br e com o autor.
Desenho: Fausto Nilo


 

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

o confidente de Licária


Em pleno início da pandemia, o poeta cearense Clauder Arcanjo estava em Vitória (ES) a trabalho. Confinado em um hotel, durante três meses passou a ler e e screver para não enlouquecer. Nessa clausura sanitária e intelectual, Arcanjo revisitou obras de quase 30 escritores. De Clarice Lispector a Emily Dickinson, de Walt Whitman a Ferreira Gullar, de Hilda Hirst a Cecília Meireles, de Fernando Pessoa a Carlos Drummond de Andrade, de Mário Quintana a Vinicius de Moraes, de Miguel de Cervantes a Eugênio de Andrade, de Cora Coralina a Manoel de Barros, e mais Adelia Prado, Manuel Bandeira, Beatriz Alcântara, Helena Kolody...

Dessas releituras, Clauder escreveu sobre cada um deles. Paria três textos por semana. E dialogava com os autores destacando trechos de seus livros em sintonia com seus sentimentos, suas inquietações e reflexões. O resultado desse período de exilio na solidão de um quarto de hotel, é o livro Confidências literárias (Sarau das Letras Editora, 2021), de uma originalidade e preciosidade como raramente vi na literatura brasileira contemporânea. O seu texto em prosa, num misto de ensaio analítico e crônica existencial, é de uma poética cativante. Os versos que ele destaca, numa intextualidade cuidadosa, se unem organicamente com o que ele escreve, um auscultando o coração do outro.
E domingo passado fui surpreendido como mais um poeta com quem ele se confidencia, a partir da leitura do meu livro Trem da memória (Editora Radiadora, 2022). Clauder Arcanjo publicou nosso encontro memorialista no jornal O Mossoroense, onde é articulista. São textos que ele reúne para uma próxima edição de Confidências.
Como todo grande poeta e seus berços referenciais, Arcanjo é originário da cidade Licária, como Bandeira foi para Pasárgada, Gabriel García Márquez morou Macondo, Drummond veio de Itabira. Honra-me passar uns dias em Licária, lá sou amigo de Arcanjo.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

insumos

 


Não foi o deus do alto da matriz
quem deu asas a minha imaginação
nem foi o padre Bomfim
(com sua mão branca de pelos escuros
que me obrigavam a beijar
quando ele apontava no começo da rua)
muito menos o padre Irismar
(com seu rosto largo de pele vermelha
que me abrigava o olhar
quando desapontava no fim da rua)
não foram eles
a quem nunca deixei meus pecados
atravessarem as treliças do confessionário.
Pecados: pecados: pecados:
os seios
das tias de perto
que o menino via
refletidos no espelho do provador
as coxas
das cutruvias de longe
que o menino ouvia
espelhadas no reflexo dos homens
e mentia que a culpa-minha-máxima-culpa
era ter fabulado para a avó
e isso não se faz
seja a última vez
e tomem intermináveis
três pais-nossos deles
três ave-marias minhas
:
ato de contrição cabisbaixo
genuflexo
postulado
em frente aos gessos santificados
e seus olhinhos punitivos.
Não, não foram eles
seres comuns de batinas pretas
atravessadores de minha fé
não foram
foram as mãos dadas com Drummond
as folhas finas da Seleções
as curiosidades do Capivarol
foram as fitas do cine Poty
as canções da radiadora
a Hora do Brasil nas válvulas do ABC
foram as notícias do tio da capital
as conversas na calçada alta
os trancosos da prima gorda
foi o olhar sem fim de tanto imaginar
que me deu asas
sobre os telhados
os algodões
as carnaúbas
e me fez ver o mar.
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Do meu livro Trem da memória (Editora Radiadora, 2022)
À venda pelo site www.radiadora.com.br e com o autor.


quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

entre o céu e o mar


Santa Cruz Cabrália, Bahia. Numa rua comprida, ainda de casas rústicas, no alto diante da imensidão do mar, vi uma senhora num banquinho. Fazia sombra e silêncio. Dei bom dia e me sentei ao seu lado, no chão, numa confortável sensação de que ela me convidara.
- Bom dia. – Respondeu, sem tirar os olhos miúdos do mar.
Um lenço branco cobria-lhe os cabelos. O rosto tostado de existência. As mãos juntas, às vezes tecendo os dedos, desfazendo nós invisíveis. Ao longo dos braços, afluentes de sua vida correndo nas veias em relevo sob a pele. Usava blusa de um clube. O presente vestindo o pretérito.
Continuamos olhando o mar. Bem longe um avião riscava o azul. Sem perceber, rompi o silêncio, como romperia o som aquele pontinho no céu. Perguntei-lhe se já viajou de avião.
Ouvi uma respirada esguia e alongada. A resposta noutra velocidade:
- Não, meu filho. Não é da minha natureza.
Uma pausa. Continuou.
- Avião com pouco já tá aqui no chão, com pouco já sobe, quando a gente 'oia', já tá nesse mundo de Deus. Viajar de avião tá difícil... no chão viajo de qualquer coisa.
Procurei o avião e tinha sumido atrás de uma nuvem.
- E o mar?
Ela firmou mais o infinito a sua frente. Pela primeira vez girava a cabeça, lentamente, medindo a latitude das ondas. Advertiu-me:
- Quando você entrar no mar, você vai andando, andando... maré seca... que quando você 'oiá' pra trás onde você foi daqui pra lá, e ver a água espumando, espumando... pode sair! Pode sair que na mesma hora vai tudo embora!
A conversa fluiu, como a água lá embaixo na areia, indo e vindo.
Chamava-se Don’Ana, tinha 90 anos, viúva. O marido foi pescador. Morava com uma irmã, dez anos mais nova. Os filhos em Salvador, os netos no meio do mundo.
Era quase almoço quando me levantei, me despedi e saí. Poucos passos e voltei. Perguntei se podia fazer uma foto. Assentiu com a cabeça.
Tinha voltado ao silêncio sobre o mar.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

um por todos, todos por um


“Isto é Comboio. Outras coisas serão igualmente Comboio, se igualmente forem concebidas no âmago da arte, atentas à prática da vida. Não a arte modular conceitual, nem à vida essencial e exposta, mas as duas, vida e arte, ambas e totalmente ilimitadas como a própria concepção artística. Isto é Comboio. E outras coisas poderão ser Comboio se, em si, não encerrarem um sentido limitado e por assim ser confirmarem o anseio dos que, nesse instante histórico, preveem o desejo nacional da libertação da palavra e a quebra das grades que encarceram o pensamento.”
- Editorial do número experimental de Comboio Vida & Arte, revista coletiva literária, lançada em Fortaleza, no congestionado e esperançoso 1982.
O coletivo de jovens poetas, artistas plásticos, fotógrafos, e tantos mais resistentes sonhadores, nos reuníamos onde podíamos, das salas dos diretórios da universidade às calçadas e mesas de bares para traçar planos de voos. E assim, nos dividíamos em tarefas num só abraço: conselho editorial, arte-finalistas, finanças, divulgação. Ninguém soltava a mão de ninguém.
O escritor e professor de literatura Kelsen Bravos está fazendo escavações desse período instigante da literatura produzida no Ceará. Uma arqueologia afetiva e necessária.
No vídeo abaixo, o meu poema Armadura, que foi muito tempo depois publicado no livro Poesia provisória (Editora Radiadora).
 

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

luz dos olhos teus



Santa Luzia iluminava

a minha infância que dormia.
Nas manhãs quentes do interior:
o facho de luz vindo da telha quebrada
(o menino na rede,
a parede azulada
a cenografia do quarto
:
o enquadramento que me guardava
no passado
que vi do futuro).
A jovem siciliana que minha tia-avó trouxe da feira
protegia meus olhos que acordavam
focava sua luz neorrealista
no quintal em mim
para o dia que começava
no sertão sem fim.
Cada manhã abençoada
com a oferenda do par de olhos na bandeja.
Casa desfeita
parentes idos
santa nas retinas.
Na parede azulada,
esse recorte é o quadro que brilha mais
no meu cinema paradiso.
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Trecho do meu livro Trem da memória, Editora Radiadora, 2022
13 de dezembro, dia de Santa Luzia.